Em Manipur, estado que fica na região norte da Índia, uma onda de violência contra os cristãos tribais Kukis – que são uma minoria étnica na região – tem resultado em dezenas de pessoas mortas, centenas de igrejas queimadas e milhares de cristãos refugiados. O conflito tem sido alimentado por tensões étnicas e religiosas, movidas por hindus extremistas, bem como pela agenda pró-hindu do governo estadual.
Manipur faz fronteira com Mianmar (país que atualmente vive sob o duro regime de uma junta militar) e é o lar de vários grupos étnicos, cada um com sua própria cultura, língua e religião. O maior grupo do estado é o Meitei, que é predominantemente hindu e vive nos vales em torno da capital do estado, Imphal. Os outros grupos são principalmente tribais e vivem nas colinas ao redor dos vales. Entre eles estão os Kukis, que são majoritariamente cristãos.
Os Meiteis e os Kukis têm um histórico de conflito por terras e recursos. As tensões entre os dois grupos têm aumentado nos últimos anos devido ao fortalecimento do nacionalismo hindu na Índia, conhecido como Hindutva.
O Hindutva é a ideologia de que a Índia “pertence aos hindus” e que outras religiões são “estrangeiras e inferiores”. O Partido do Povo Indiano (BJP), que governa em nível nacional e em muitos estados, incluindo Manipur, tem promovido o Hindutva e tem sido acusado de discriminar as minorias religiosas do país, especialmente muçulmanos e cristãos.
A situação entre os Meiteis e os Kukis atingiu um ponto crítico no início de maio, quando o Tribunal Superior de Manipur propôs conceder o status de “Tribo Agendada” à comunidade Meitei. O status de “Tribo Agendada” é uma categoria constitucional que concede certos benefícios e proteções a grupos étnicos marginalizados na Índia, como assentos reservados para empregos no governo, escolas e cargos eletivos.
A tribo Kuki expressou sua oposição à proposta, por meio de protestos pacíficos em todo o estado. No entanto, alguns grupos Meiteis responderam de forma violenta aos manifestantes, atacando-os com armas e incendiando suas casas e igrejas. A violência rapidamente assumiu conotações religiosas, com extremistas hindus visando cristãos de diferentes grupos étnicos.
Segundo informações mais recentes disponibilizadas pela ONG Portas Abertas à Gazeta do Povo, a violência em Manipur contra cristãos já resultou no deslocamento de mais de 50 mil pessoas visando fugir da repressão para outras partes da Índia, em 400 igrejas queimadas por extremistas hindus, 250 vilarejos onde se concentravam famílias cristãs étnicas destruídos e 120 pessoas mortas.
Entre as vítimas, está Domkhohoi Haokip, uma mulher cristã de cerca de 60 anos que foi morta dentro de uma igreja enquanto orava. O abastecimento de alimentos segue sendo dificultado, caminhões militares foram queimados e muitas pessoas sofrem com traumas mentais e físicos.
A comunidade cristã em Manipur tem convivido com o medo e a incerteza desde o início da violência. Muitos optam por fugir de suas casas e tentam se refugiar em acampamentos de ajuda ou em estados vizinhos. Os que ficam sofrem com a violência extrema, que envolve espancamentos, ameaças de morte e pressão de extremistas, que os forçam a renunciar à sua fé.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o secretário-geral da ONG Portas Abertas no Brasil, Marco Cruz, afirmou que para entender a situação dos Kukis, é necessário antes entender a situação de perseguição a cristãos na Índia.
Segundo
ele, o país é o 11º na Lista Mundial da Perseguição de 2023, que classifica os
50 países que mais perseguem cristãos no mundo. A lista é organizada e
publicada anualmente pela ONG com informações enviadas por parceiros locais.
De
acordo com Cruz, a perseguição aos cristãos na Índia é intensificada pelo
desejo dos hindus extremistas de “limpar” o país da “presença e influência
deles”.
“A força motora por trás disso é o Hindutva”, afirmou Cruz, referindo-se à ideologia que não considera os cristãos indianos e outras religiões minoritárias do país como “verdadeiros indianos”.
Ele acrescentou que, “como os cristãos geralmente têm alianças fora da Índia, o Hindutva alega que o país deve ser ‘purificado da presença deles’”.
Segundo o secretário-geral, isso tem levado cristãos e outras minorias religiosas indianas a serem o principal alvo da perseguição sistêmica colocada em prática pelos extremistas hindus.
Em muitos casos, os extremistas chegam a usar de violência, que segundo Cruz, é “cuidadosamente orquestrada, incluindo o uso das mídias sociais para disseminar notícias falsas e espalhar o ódio” contra adeptos de religiões minoritárias.
Nos
últimos anos, com o aumento da propagação do Hindutva, muitos extremistas
hindus passaram a atacar membros de outras religiões com certa “impunidade”,
disse Cruz.
Ele ainda afirmou que cada vez mais estados indianos estão implementando leis “anti-conversão”, que supostamente servem para impedir hindus de serem “convertidos a força” para outras religiões.
Porém, de acordo com o secretário-geral, “elas [as leis anti-conversão] geralmente são usadas como uma desculpa para assediar e intimidar cristãos que estão apenas fazendo coisas como distribuindo ajuda ou realizando um culto privado”.
Segundo
Cruz, cada vez mais cristãos estão experimentando a “exclusão social em suas
comunidades, discriminação no local de trabalho e acusações e rumores falsos espalhados
sobre eles”.
O secretário-geral observou que os cristãos que mais estão em risco são os de origem hindu.
“Em algumas partes da Índia, muitos enfrentam pressão constante para voltar ao hinduísmo”, como “exclusão social, discriminação no trabalho, agressões físicas e, às vezes, até mesmo a morte”, disse.
“Líderes de igrejas também são vulneráveis. Ser pastor é uma das vocações mais arriscadas no país atualmente. Extremistas hindus visam pastores, suas esposas e filhos com ataques violentos para semear medo na comunidade cristã”, conta Cruz.
A situação de perseguição tribal na Índia não ocorre somente com os Kukis: também ocorre em várias tribos que têm entre seus membros pessoas que se converteram do hinduísmo para o cristianismo. Os Kukis, porém, são uma das maiores tribos da região e praticamente todos os seus membros são convertidos, o que levou à perseguição em massa dessa tribo.
“Ainda no ano passado, várias tribos foram invadidas, cristãos foram expulsos de suas comunidades e agredidos verbal e fisicamente”, pontuou Cruz.
Perseguição envolve também motivos políticos
Na entrevista, Marco Cruz também afirmou que existem alguns fatores políticos por trás da perseguição sistêmica a cristãos na Índia.
De acordo com ele, o Partido do Povo Indiano, do qual faz parte o premiê Narendra Modi, segue a ideologia do Hindutva e assedia cristãos para que “não evangelizem” os outros. A medida seria uma forma de fazer com que o número de hindus não diminua no país e que os adeptos da religião continuem votando nos representantes lançados pelo partido.
Cruz relatou ainda que a posição do primeiro-ministro indiano de fazer do hinduísmo a principal religião no país tem incentivado “ainda mais a perseguição, agressão e até a morte de cristãos”.
Ele lamentou a situação, afirmando que “as autoridades estão de acordo com as leis do país e nada fazem para defender os direitos dos cristãos”.
Cruz ainda lembrou que, no dia 28 de abril, protestos contra a expulsão do grupo étnico Kuki de um vilarejo acabaram intensificando ainda mais o conflito violento em Manipur. Ele disse que a justificativa oficial da expulsão, de acordo com autoridades, era de que “estavam expulsando os cristãos tribais para proteger a floresta”.
No entanto, Cruz observou que o Fórum de Líderes Indígenas vem se opondo ao mapeamento da floresta implementado pelo governo há algum tempo e que a maioria dos manifestantes são cristãos tribais ameaçados pela atual gestão do partido pró-hindu BJP, que governa o estado de Manipur. O governo estadual busca “evacuar as áreas de florestas e vilarejos onde os cristãos tribais vivem há anos”.
Marco Cruz lembrou também que, desde o final de abril, os grupos Meitei, aliados do governo, “assaltaram e atacaram casas e propriedades de cristãos Kuki que fugiram como deslocados internos”. Com isso, “mais de 15 mil cristãos fugiram para outras regiões da Índia ou para o país vizinho, Mianmar”.
“Nosso
parceiro local, Ngai Elam [nome fictício, utilizado para proteger a identidade
dele], mora em uma das regiões recém afetadas e confirmou que os Meiteis continuam
atacando o lugar com tiros todos os dias para aterrorizar os cristãos tribais”,
completou Cruz.
Além disso, mulheres e meninas são assediadas sexualmente e abusadas. Já os homens com mais de 18 anos são treinados com armas pelos grupos insurgentes. Cruz contou ainda que “o único lugar seguro para as minorias étnicas são os acampamentos de refugiados”.
De acordo com ele, cristãos estão sem luz ou água e cristãs estão “dando à luz em meio a conflitos e sendo mortas durante orações”.
Sobre a falta de cobertura da mídia internacional sobre o assunto, Cruz disse que isso pode ocorrer porque “poucas pessoas acreditam que uma religião tão pacífica como o hinduísmo é capaz de produzir o ódio. Mas, como em todas as religiões, existe no hinduísmo a ala fundamentalista, que usa a religião para propagar o ódio e suprimir o direito à adoração de outras religiões”.